Antes de mais nada vamos colocar as coisas em
perspectiva: Hoje as possibilidades de impressão e publicação de modo
independente são inúmeras. É possível fazer uma edição por demanda, é possível
publicar material de luxo com capa dura, verniz, caixinha especial, formatos
widescreen, é possível fazer capa e miolo colorido, tudo isso a preços viáveis,
principalmente se houver um esquema de venda amarrado como crowdfunding ou
sites de venda. É possível publicar tudo apenas online de graça em blogs ou sites , e em alguns casos é possível publicar e ser remunerado por isso. Não estou dizendo que agora nos anos da década de 2010 seja baratinho
ou seja moleza editar ou publicar qualquer coisa, entretanto é infinitamente mais fácil que
nos anos da década de 1990, quando começa nossa história.
Existiam publicações independentes feitas de maneira
profissional impressas offset, mas esse material era mais caro se produzir e
mais caro de distribuir e a grande maioria dos produtores de material
independente não tinha esse tipo de facilidade. Os valores eram proibitivos para uma produção independente.
Em Fortaleza, desde 1985 mais
ou menos, o
PIUM, jornalzinho da
Oficina de Quadrinhos da Universidade Federal
do Ceará era produzido na gráfica da UFC, a Imprensa Universitária. A
publicação, impressa em offset, trazia matérias entrevistas e produção de quadrinhos dos alunos e
professores da Oficina de Quadrinhos. Mas veja, havia uma instituição (a Universidade Federal)
bancando a produção do PIUM, isto não nos permite qualificá-lo como "fanzine" ou
como "produção independente", que como bem diz o nome trata-se de (fã + magazine) uma produção
desvinculada dos grandes meios de produção ou instituições. O custo integral dessas publicações sai exclusivamente do bolso de seus autores/produtores.
Estreando no Brasil em 1965 com o boletim de ficção
científica feito por Edson Rontani chamado "FICÇÃO", os fanzines eram
impressos e distribuídos artesanalmente, inicialmente por uso de mimeógrafo e
posteriormente de modo xerografado. Os seriados das matinês, os quadrinhos
antigos, com personagens que não estavam mais nas bancas de revistas, ganhavam
o mundo nas capas e páginas de publicações como Historieta (Oscar Kern), Valdir
Dâmaso (Gibisada), O Castelo das recordações (José Magnago) e Grupo Juvenil
(Jorge Barwinkel).
Especificamente nos anos 80 e 90 proliferaram os fanzines de
música e os de estética punk. Embora algumas dessas publicações possuíssem um
cuidado editorial, uma maior atenção às informações e imagens, a grande maioria
era feita de modo grosseiro, talvez pelo próprio contexto do universo Punk ou
do Heavy Metal. Acontece que essa estética Punk/Metaleira ficou no imaginário
popular associada à produção fanzineira. Os fanzines desse tema eram muitos e
todo bom apreciador de som pesado em algum momento se deparava com essa
produção.
Meados dos anos 90 os RPGs começam a ganhar popularidade no Brasil e à partir
do
Pergaminho (editado por mim e pelo Afrânio Bezerra de Souza) considerado o
primeiro fanzine de RPG do Brasil os Rolling Playing Games entram no circuito
da fanzinagem. Como Afrânio trabalhava com design e programas gráficos, o
Pergaminho era editado no computador, depois tinha as matérias impressas,
depois recebia as ilustrações (que eram reduzidas em xerox e coladas nos
espaços vazios), recebia as páginas de HQs também reduzidas em xerox e coladas
no boneco (nota: scanner não era coisa simples de conseguir) e após todo esse
processo era reproduzido em xerox.
Junto com Fernando Lima, produzi também o Relatório da
Situação, o fanzine informativo do Grupo Avançado, clube de Ficção Científica e
Jornada nas Estrelas que entrou para a história do movimento trekker sendo
citado em livros e artigos deste tema.
Essas experiências com o Pergaminho e com o Relatório da
Situação, ambos com seu visual clean, sem dúvida influenciaram o surgimento do
Manicomics. Mas o fato é que: Havia uma forte preconceito com fanzines.
Os leitores, graças a uma política mais democrática de
importação de material impresso, tinham acesso a revistas e livros importados.
Era possível adquirir numa banca no centro de Fortaleza, por exemplo, a revista
Starlog
— que era um fanzine americano
feito por fãs de Sci-Fi. Materiais gringos de alta qualidade estavam inundando
as bancas e as prateleiras de quem tinha algum conhecimento da língua inglesa.
Todos esses leitores de material importado ajudavam a difundir o valor da
qualidade gráfica de um produto. Somado a isso, lembre-se que a estética punk
era feita de sujeira, colagens descuidadas, letras garranchudas, logotipia
quase ilegível, linguagem de grafitagem de gangue tudo isso resumido na pior
acepção do termo poluição visual. Aqui vale uma ressalva, claro que é possível
usar todos esses elementos eram bom design e boa comunicação visual para seu
público específico, infelizmente não o eram para o grande público, com isso
todas as vezes que alguém queria denegrir um projeto de comunicação visual
usava a expressão: "parece um fanzine". Isso pegava mal para os
fanzines e ajudou a solidificar na cabeça dos leigos que se era fanzine era
obrigatoriamente: ruim, sujo, malfeito, sem critério, ilegível.
A Logotipia
inicial do Manicomics foi desenvolvida por Daniel Brandão e Eduardo Ferreira. A
parte de editorial, organização dos textos, diagramação interna foi feita por
mim junto com o Eduardo Ferreira. O Daniel Brandão assinava como editor, mas o
conselho editorial (Daniel, Geraldo Borges e JJ Marreiro) decidia o que entrava
e o que não entrava em cada edição. Desde o início existiam algumas
preocupações que eram partilhadas por toda a equipe:
-Fazer um
produto limpo, legível, com boa comunicação visual
-Publicar
histórias coesas, autocontidas, fáceis de ler e entender
-Colocar o
menor preço de capa possível para que o maior número de pessoas pudesse comprar
-Procurar a
melhor xerox para que traço e texto ficassem legíveis e apreciáveis
-Reunir artistas cujo objetivo fosse contar histórias de modo claro e objetivo
(Neste ponto vale lembrar que os colaboradores do Manicomics foram um dos principais motivos para o contínuo progresso da qualidade da publicação. Cada colaboração que chegava era uma nova inspiração e um novo estímulo. Aldairton, Antonio Eder, Caetano Neto, Denilson Albano, Edvanio Pontes, Edvan Bezerra, E.C.Nickel, Falex, Gian Danton, Jean Okada, Lene Chaves, Ronaldo Mendes, Wagner Francisco estavam entre os autores qua ajudaram o Manicomics a voar tão alto).
Dentro desse
contexto no qual a linguagem da época era a sujeita e o descuido, no qual todo
o material independente era feito em xerox, algumas bastante descuidadas, o
Manicomics surgia como uma lufada agradável de vento num dia terrivelmente
quente. Era como ver a esperança em meio a um mundo de trevas. Não consigo
contar —ao mostrar o Manicomics— quantas milhares de vezes ouvi de leitores,
artistas, jornalistas e críticos a frase: "Cara, isso é muito bom! Nem
parece um Fanzine!"